sábado, 2 de junho de 2012

Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial: Um novo tipo do Código Penal


O Código penal segue sofrendo remendos. Poucos dias depois de uma importante alteração na prescrição penal o legislador agora cria mais um tipo penal.  Trata-se do artigo 135-A, introduzido pela lei 12.653, que tem o seguinte teor:

Art. 1o  O Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 135-A: 
Art. 135-A.  Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:  
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. 
Parágrafo único.  A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.”
Art. 2o  O estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar emergencial fica obrigado a afixar, em local visível, cartaz ou equivalente, com a seguinte informação: “Constitui crime a exigência de cheque-caução, de nota promissória ou de qualquer garantia, bem como do preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial, nos termos do art. 135-A do Decreto-Lei no2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.” 
Art. 3o  O Poder Executivo regulamentará o disposto nesta Lei. 
Art. 4o  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. 
Brasília, 28 de maio de 2012; 191o da Independência e 124o da República. 

Abaixo alguns comentários ao novo tipo penal.

1-NATUREZA DO CRIME E ASPECTOS GERAIS

A lei 12.653 criou o tipo penal que recebeu a nomenclatura de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial. Trata-se de mais um crime omissivo próprio presente no tipo penal. Esse tipo de crime consubstancia-se em exceção no sistema jurídico brasileiro. Conforme Sheila Bierrenbach:

As figuras penais descrevem na maior parte, condutas positivas consistentes num fazer. Neste sentido, os delitos de homicídio ( artigo 121), furto ( artigo 155) , estelionato ( artigo 171), moeda falsa (  artigo 289) , peculato ( arrtigo 303), entre tantos outros.
Excepcionalmente, encontram-se descrições expressas de condutas negativas, consistentes num não fazer.  Assim, os delitos de “omissão de socorro” ( artigo 135), “abandono material” ( art. 244), “abandono intelectual” ( art. 255), “omissão de notificação de doença” ( artigo 269).[1]

A lei estabelece mais uma exceção: incorrerá em crime quem se omitir de prestar assistência hospitalar sob pretexto de exigir alguma garantia para receber o correspondente.  A pena é maior do que a de omissão de socorro ( que é de um a seis meses ou multa) do artigo 135. Tal como no artigo 134 caso da omissão resulte lesão corporal de natureza grave ( aumento em dobro ) ou em morte ( aumento em triplo). Doravante, os hospitais terão que realizar o atendimento necessário e posteriormente tomar as medidas cabíveis no campo cível.
Uma crítica a ser feita é que a lei deixa claro quem será responsabilizado pelo crime: o atendente? O diretor do hospital ( responsabilidade objetiva ? ? ?) ? O médico que não atende? Enfim, trata-se uma questão importantíssima que deverá ser regulamentada.
Um ponto positivo da lei é a determinação de que os hospitais coloquem cartazes visíveis que divulguem a existência do tipo penal. Também devem ser estabelecidas em regulamento especifico as consequências dos hospitais que infringirem essa determinação.
Enxergamos dois fundamentos na nova lei: um de ordem filosófica e um de ordem teórica

2- O FUNDAMENTO PRÁTICO
Sem dúvida que uma das maiores causas da edição da lei são os constantes problemas jurídicos envolvendo pacientes, hospitais e planos de saúde. Problemas estes que muitas vezes exorbitam o mero prejuízo econômico e chegam a causar danos irreversíveis e até mesmo a morte. Nesse sentido, há alguns dias o STJ teve uma decisão que teve ampla repercussão  em todos os setores da sociedade. Trata-se do Resp 114840 com o seguinte conteúdo:

CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. REDE CONVENIADA. ALTERAÇÃO. DEVER DEI NFORMAÇÃO ADEQUADA. COMUNICAÇÃO INDIVIDUAL DE CADA ASSOCIADO. NECESSIDADE.


1. Os arts. 6º, III, e 46 do CDC instituem o dever de informação e
consagram o princípio da transparência, que alcança o negócio em sua
essência, na medida em que a informação repassada ao consumidor
integra o próprio conteúdo do contrato. Trata-se de dever intrínseco
ao negócio e que deve estar presente não apenas na formação do
contrato, mas também durante toda a sua execução.

2. O direito à informação visa a assegurar ao consumidor uma escolha
consciente, permitindo que suas expectativas em relação ao produto
ou serviço sejam de fato atingidas, manifestando o que vem sendo
denominado de consentimento informado ou vontade qualificada. Diante
disso, o comando do art. 6º, III, do CDC, somente estará sendo
efetivamente cumprido quando a informação for prestada ao consumidor
de forma adequada, assim entendida como aquela que se apresenta
simultaneamente completa, gratuita e útil, vedada, neste último
caso, a diluição da comunicação efetivamente relevante pelo uso de
informações soltas, redundantes ou destituídas de qualquer serventia
para o consumidor.

3. A rede conveniada constitui informação primordial na relação do
associado frente à operadora do plano de saúde, mostrando-se
determinante na decisão quanto à contratação e futura manutenção do
vínculo contratual.

4. Tendo em vista a importância que a rede conveniada assume para a
continuidade do contrato, a operadora somente cumprirá o dever de
informação se comunicar individualmente cada associado sobre o
descredenciamento de médicos e hospitais.

5. Recurso especial provido.
Nesse caso, por exemplo, o paciente acabou por falecer, uma vez que não recebeu tratamento. E casos assim, infelizmente, se multiplicam na jurisprudência do STJ.
Cumpre destacar que em recente palestra proferida em curso promovida pela OAB, o professor Flávio Tartuce afirmou ser contradição a jurisprudência do STJ ser tão severa com os planos de saúde e excessivamente branda com os bancos. Concordamos que muitas vezes a jurisprudência do STJ é branda com o sistema bancário. Mas a diferença é plenamente justificável, pois os planos de saúde tutelam bem jurídico fundamental. Assim, a tutela penal é extremamente saudável.

3- O FUNDAMENTO TEÓRICO

Por fundamento filosófico a nova lei tem a teoria da drittwirkung ou eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Para que tenhamos uma idéia da importância do tema trazido à baila demos um breve exemplo. Imagine que uma sociedade particular fixe como norma “Fica proibida o ingresso de mulheres nesta sociedade”. Ou ainda um clássico exemplo: uma companhia de teatro divulgue o seguinte anúncio: “Procura-se ator negro para estrelar peça teatral”. Seriam essas cláusulas legítimas e aplicáveis dentro de um Estado democrático de Direito? Dentro de um liberalismo exagerado talvez. Afinal, poderia ser afirmar que “a propriedade é absoluta”. No entanto, de acordo com a teoria da Drittwirkung a questão assume maior complexidade. No dizer do jurista Ingo Wolfganfg Sarlet os direitos fundamentais são eficazes e vinculantes no âmbito das relações entre particulares[2]. Ora, sendo a igualdade um direito fundamental estariam os particulares também obrigados a ela. Desta feita, só em caso de uma justificativa inescusável as referidas cláusulas poderiam ser toleradas. No segundo caso, por exemplo, uma justificativa aceitável seria a de que a referida peça seria Otelo.
A abalizar a tese do professor Sarlet estão vários artigos da Constituição como por exemplo, o artigo 226 que estabelece ser dever de todos assegurar aos adolescentes seus direitos fundamentais.Assim buscou o legislador dotar o cidadão de maior poder e responsabilidade no cumprir das normas constitucionais, no chamado patriotismo constitucional, chamando a população a exercer papel ativo na construção do Estado. Por outra feita, o constituinte originário também erigiu a solidariedade à norma constitucional ( artigo 3º, I). É válida basilar lição do professor Daniel Sarmento sobre o tema ao afirmar que tal disposição não pode obrigar ninguém a pensar ou a sentir de determinada forma, mas pode condicionar o comportamento externo dos agentes, vinculamdo-os a obrigações jurídicas.[3]
Esse novo dispositivo do Código Penal aplica justamente a teoria da drittwirkung, condicionando a conduta dos hospitais obrigando-os, penalmente , a aplicar o princípio da solidariedade.




[1] BIERRENBACH, Sheila. Crimes omissivos impróprios: uma análise à luz do Código Penal Brasileiro. Belo horizonte: Del Rey. 2002.  P 24.
[2] SARLET, Ingo Wolfganf. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: livraria do advogado, 2004. p 72
[3] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen juris. 2004 p 94